Este é um conto retirado do livro “Mulheres que Correm com os Lobos” de Clarissa Pinkola Estés, que trata do arquétipo de Mulher Selvagem.
Podemos pensa-lô na estrutura base psíquica feminina, na capacidade de renovação da vida que existe em todas as mulheres e de cuidado perante ao mundo árido e seco das guerras, da violência e da brutalidade. Será que se o mundo fosse comandado predominantemente por mulheres teríamos tantos conflitos que ameaçam a vida de milhares de pessoas nesse planeta? La Loba utiliza o canto que na verdade significa usar a voz da alma para ressuscitar depois de juntar os pedaços e a estrutura básica de reconstituição do vivo...
Se não fossem as mulheres parideiras.. que procuram vencer a fome, a doença, a miséria e a falta de perspectiva de vida, a humanidade teria sido exterminada da face da terra. E, no entanto, continuam sendo as mulheres as maiores vítimas de todas as mazela desse mundo. São elas que continuam sendo vitimas da violência doméstica, vítimas da precariedade de suas casas.... São as mulheres que choram seus filhos mortos por balas perdidas ou não.... São as mulheres que criam formas novas de renovação da vida a cada esqueleto que se constitui em seu ventre e que nasce através delas. As mulheres são criaturas cheias de sabedoria. Esta velha, que aparece neste conto representa o que há de mais antigo na história da humanidade e está no lugar do inexplicável, do imponderável, de uma força que vem das entranhas e que é capaz de ultrapassar qualquer limite real ou imaginário em prol da vida.
Já o osso dessa história representa aquilo que é quase indestrutível, que apesar do fim da carne permanece contando sua história e marcando a existência e a época de cada vida. O osso é a base do esqueleto que é o que nos mantém de pé. Quando morremos, viramos pó... mas os ossos permanecem para demonstrar nossa existência.
La Loba
Existe uma velha que vive num lugar oculto de que todos sabem, mas que poucos já viram. Como nos contos de fadas da Europa oriental, ela parece esperar que cheguem até ali pessoas que se perderam, que estão vagueando ou à procura de algo. Ela é circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda, e demonstra especialmente querer evitar a maioria das pessoas. Ela sabe crocitar[i] e cacarejar, apresentando geralmente mais sons animais do que humanos. Dizem que ela vive entre os declives de granito decomposto no território dos índios tarahumara. Dizem que está enterrada na periferia de Phoenix perto de um poço. Dizem que fica parada na estrada perto de EL Paso, que pega carona aleatoriamente com caminhoneiros até Morelia, México, ou que foi vista indo a feira acima de Oaxaca, com galhos de lenha de estranhos formatos nas costas. Ela é conhecida por muitos nomes: La Huesera, a Mulher dos Ossos; La Trapera, a Trapeira; e La Loba, a Mulher-lobo. O único trabalho de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva especialmente o que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia dos ossos de todos os tipos de criaturas do deserto: o veado , a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua especialidade reside nos lobos. Ela se arrasta sorrateira, e esquadrinha as montañas e os arroyos, leitos secos de rios, à procura de ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca da criatura está disposta à sua frente, ela senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar. Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É ai que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pêlos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado. La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar. E La Loba ainda canta,com tanta intensidade que o chão do deserto estremece, e enquanto canta, o lobo abre os olhos, de um salto e sai correndo pelo desfiladeiro. Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer pela incidência de um raio de sol ou de luar sobre seu flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte. Por isso, diz-se que, se você estiver perambulando pelo deserto, por volta do pôr-do-sol, e quem sabe esteja um pouco perdido, cansado, sem dúvida você tem sorte, porque La Loba pode simpatizar com você e lhe ensinar algo __ algo da alma.
[i] som emitido pelo corvo.
[i] som emitido pelo corvo.
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